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'Tive tudo para morrer', diz ex-repórter de TV que cobriu acidente
Redação
A falta de vacinas para sarampo na rede estadual de saúde era um transtorno para população goianiense em setembro de 1987. A jornalista Mirian Alves Tomé Resende, da TV Anhanguera, filiada da TV Globo, foi cobrir o assunto no dia 13 daquele mês e agendou uma entrevista com o então (e atual) secretário de Saúde, Antônio Faleiros. Mal sabiam os dois que a entrevista seria cancelada, pois naquele momento acontecia, na capital de Goiás, o maior acidente radioativo do mundo fora de usinas nucleares.
"Ele estava muito nervoso, disse que não teria condições de me atender porque tinha um problema muito sério. Eu quis saber o que era, e ele falou que havia uma suspeita de contaminação, a princípio um vazamento de gás", recorda a repórter, que à época tinha 26 anos. "O secretário contou que pessoas estavam passando mal em um ferro-velho, e nós fomos para lá", relembra Mirian, 25 anos depois.
Mirian lembra que o local estava sem nenhum isolamento e entrou no ferro-velho junto com o cinegrafista Valdir Pereira, onde encontrou com Devair Ferreira, o proprietário. Ele disse à jornalista que estava passando muito mal. Em seguida chegaram a sua cunhada, Maria Gabriela, e sua sobrinha Leide, de 6 anos. Gabriela disse à então repórter que Devair estava com a gengiva sangrando e a mão machucada. "Ela falou para mim: 'eu sinto dor de cabeça forte, fraqueza, a Leide também brincou com o material, era um pó azul brilhoso, muito bonito'", relembra Mirian.
Duas pessoas tinham levado o material à Vigilância Sanitária e também acabaram se contaminando. A equipe da TV seguiu para lá. "A peça estava no pátio de entrada, jogada no chão, e todo mundo entrando e saindo normalmente", revela Mirian.
A reportagem foi ao ar naquela noite, já com a informação da Secretaria Estadual de Saúde de que poderia ser um material radioativo. Nos dias seguintes técnicos da Universidade Federal de Goiás (UFGO) e da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) isolaram e mapearam os pontos.
Foi o diretor do Cnen à época, Júlio Rosenthal, que alertou Mirian que ela poderia ser uma vítima: "Trata-se de um acidente radiológico, e você correu um grande risco e pode estar contaminada. Você e o cinegrafista", contou. Por alguns dias, a repórter viveu o drama de cobrir o fato sem saber se estava infectada. Ela explica que preferiu continuar trabalhando porque se sentia responsável pelo assunto. Após fazer o teste de radiação, a dupla da TV Anhanguera se tranquilizou, pois não estavam contaminados.
Depois que foi feito o mapeamento da radiação, se descobriu que a peça foi encontrada por dois catadores de lixo e tratava-se de um aparelho de radioterapia com uma cápsula contendo o material radioativo césio 137. Os goianienses entraram em pânico. O estádio Olímpico, onde era feita triagem da população, filas enormes se formavam, conta a jornalista, que registrava tudo para o canal de TV. "Eram todas pessoas muito humildes, aquilo era muito triste."
Quatro pessoas morreram pouco depois de um mês do acidente, a mulher do dono do ferro-velho, Maria Gabriela, a menina Leide e dois funcionários de Devair. Ele morreu anos depois de complicações hepáticas. A Associação das Vítimas do Césio 137 aponta que nesses 25 anos 104 pessoas morreram em função do acidente.
Apesar do exame, Mirian diz que o medo da contaminação demorou a passar. Lembra que fez tratamento psicológico e parou de tomar anticoncepcional com receio de ficar estéril. A boa notícia chegou em fevereiro do ano seguinte, quando ela engravidou de Andressa. A filha tem hoje 23 anos e estuda medicina.
"Eu percebi que não existia uma estrutura no País para atender aquele tipo de acidente, a Cnen aprendeu fazendo", afirma a jornalista, que hoje é dona de uma editora. Ela acredita que teve uma "proteção divina, e nada me afasta dessa certeza porque eu tive tudo para morrer contaminada".
Os detalhes da tragédia
No dia 13 de setembro de 1987, no Centro de Goiânia, dois catadores de lixo descobrem um aparelho de radioterapia abandonado. Com a intenção de vender o metal, a dupla leva até um ferro-velho localizado na rua 57 do Setor Aeroporto. O dono do estabelecimento, Devair Alves Ferreira, compra o material e, naquele noite, abre a cápsula e encontra um pó que emitia um brilho azul. Maravilhado com a coloração, ele leva para dentro de casa e mostra para a mulher, Maria Gabriela Ferreira, e para o restante da família. Sem ter noção do que tinha nas mãos, ele passou dias mostrando para amigos, vizinhos e parentes, o seu achado. Alguns até levaram porções do pó para casa, como o seu irmão Ivo. Nesse meio tempo, Devair e sua família começam a apresentar os sintomas da radiação, como tonturas, náuseas e vômitos.
Alertada por vizinhos, a mulher de Devair desconfiou que os problemas de saúde tinham origem na cápsula. De ônibus, ela levou o material até a Vigilância Sanitária. Os doentes, que já apresentavam queimaduras, eram tratados no Hospital de Doenças Tropicais. Somente no dia 29 de setembro foi constatado que o produto levado por Maria Gabriela era radioativo e se tratava do césio 137, uma substância que não existe na natureza e é resultado da queima do Urânio 235 dentro de um reator nuclear.
A Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) foi acionada. O pânico se espalhou por Goiânia. A Cnen monitorou os níveis de radioatividade de mais de 110 mil pessoas, no Estádio Olímpico. Encontrou radiação em 271 delas, sendo que 120 tinham rastros em roupas.
No dia 1º de outubro daquele ano, 14 pessoas, em estado grave, foram levadas para o Hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Poucas semanas depois, quatro delas morreram. A primeira foi Leide das Neves Ferreira, 6 anos, a sobrinha do dono do ferro-velho e que se tornou o maior símbolo da tragédia. No mesmo dia, Maria Gabriela Ferreira, 37 anos, perdia a vida também. Morreram ainda outros dois jovens, Israel Batista dos Santos, 22 anos, e Admilson Alves de Souza, 18 anos. Os quatro foram os únicos mortos segundo dados oficiais. A Associação das Vítimas do Césio 137, no entanto, aponta que nesses 25 anos 104 pessoas tenham morrido e cerca 1,6 mil tenham sido afetadas de forma direta.
Os responsáveis pela tragédia foram condenados por homicídio culposo, ou seja, sem intenção de matar e cumpriram penas brandas. Em fevereiro de 1996, quase dez anos depois do acidente, os médicos Carlos Bezerril, Criseide Castro Dourado e Orlando Alves Teixeira e o físico hospitalar Flamarion Barbosa Goulart foram senteciados a três anos e dois meses de prisão em regime aberto. Os médicos e o físico tiveram que prestar serviços à comunidade.
A decisão foi do Tribunal Regional Federal de Brasília, que modificou as penas impostas pela Justiça de Goiânia. Em 1992, todos os envolvidos tinham recebido penas mais brandas, mas um recurso impetrado junto ao TRF alterou toda a situação.
Sócios na Clínica de Radiologia de Goiânia, Carlos, Criseide e Orlando foram considerados os principais responsáveis pelo acidente. Eles deixaram, na sede da clínica, uma bomba radioativa. Com a retirada de telhas, portas e janelas, o prédio ficou desprotegido e a bomba acabou chamando a atenção de catadores.
O ferro-velho e outras residências da região foram destruídas, assim como os pertences das famílias envolvidas, gerando toneladas de rejeitos radioativos. Um depósito foi construído em Abadia de Goiás, cidade ao lado de Goiânia. Em 1987, quando os rejeitos foram levados para lá, Abadia de Goiás ainda não era um município.
Terra
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