Carta aberta a um jovem comerciante de Nova Andradina

ou “esperando para ver onde o socialismo deu certo”

*Eduardo Martins


Recentemente me deparei com um rapaz, funcionário de uma loja aqui do comércio da nossa urbe. Lia-se uma frase um tanto curiosa em sua camiseta: "esperando para ver onde o socialismo deu certo" e ao lado da genial frase tinha um esqueleto. Achei até engraçado e perguntei assim como quem não quer nada para o jovem "onde o capitalismo deu certo?". Nem me lembro o que ele disse, foi só uma pergunta retórica. Dessa forma o título do presente ensaio remete a essa dúvida existencial desse jovem capitalista e que hoje resolvo tentar responder, mas o farei por antíteses e de maneira jocosa não me levem muito a sério. Peço desculpas antecipadamente pela longa extensão do texto, ou do chamado textão, que é de fato muito grande em tempo de redes sociais e de leitores menos afeitos a leitura escrita que preferem os memes, gifs, e as fake News. Desculpem-me, tentem ir até o final.

O tempo passou e eu volto por meio desse canal público para refletir um pouco sobre aquele episódio e talvez dar uma resposta, não ao moço, que muito provavelmente nem deve se lembrar do caso, mas uma resposta para mim mesmo e para alguns caros amigos que possam ter a mesma dúvida. Quero crer que a resposta prática para o rapaz deve ter vindo agora nessa pandemia, mas que na verdade é apenas uma justificativa para muitos patrões e comerciantes em geral reclamarem da economia capitalista e da sua “injustiça". Ora, o comércio não está fechado nem há 15 dias e muitos já estão “quebrando” e demitindo os seus "colaboradores", leia-se, trabalhadores precarizados com direitos trabalhistas mínimos. Então, pode-se supor que tais comerciantes já vinham "mal das pernas", no bom português, há muito tempo, pelo menos desde a crise de 2008, quando o governo jorrou milhões nas empresas e microempresas em geral e tais capitalistas investiram essa grana pública a altos juros nos bancos ou viraram rentistas ou agiotas.

Isso justifica os comerciantes e pessoas de direita fazerem carreantas em plena pandemia de um vírus altamente contagiante e letal, que requer isolamento total, para pedirem a abertura do comércio, a volta do capitalismo, a volta daquele consumo louco e desenfreado. Podem tirar “o cavalinho da chuva”, por dois motivos; primeiro, o consumo desenfreado não vai acontecer, segundo, o pouquíssimo consumo que possa ter não salvará o comerciante falido do seu inerente destino, nem vale a pena a mortalha que causará.

O leitor mais desatento poderá me acusar de querer ver a ruína do comércio ou do capitalismo, nada disso, pelo contrário, quero que essa pandemia passe, que a vida se restabeleça, a vida humana de contatos, de normalidade nos estudos, lazer, trabalho, passeios, conversas, etc. Contudo, mesmo quando essa pandemia passar não acho que o consumo voltará desenfreado e maluco como era antes, pois a massa de desempregados é exorbitante, os trabalhadores precarizados mal conseguem se alimentar, os juros bancários um roubo na renda dos trabalhadores. A tendência é de que as pessoas consumam só o estritamente necessário, nada de supérfluos, nada de gastos extras, nada de investimentos a médio e longo prazo. O trabalhador que ainda se mantém no emprego não tem certeza de que continuará.

O capital tem uma lógica cruel; se ele entra em crise, a primeira coisa que faz é demitir o trabalhador e, uma vez esse desempregado, o consumo cai, entrando menos dinheiro no comércio e assim um ciclo vicioso. Moral da conversa, quem tem um pouquinho de dinheiro não vai gastar como antes. Então, o discurso de que o comércio tem que abrir para não “quebrar” e não "ser obrigados a demitir" é uma falácia político-ideológica neoliberal, vou explicar melhor abaixo.

Ah! E a “altíssima” ajuda do governo de $600,00? Pergunta-me aquele jovem lá do começo da conversa, hipoteticamente. Sim, acho que somente agora sou capaz de responder àquela perguntinha boboca e mal feita dele. Ora, por que o Estado deveria dar dinheiro ao povo? Isso é coisa de socialismo! Correto? Mas eu concordo que no nosso tipo de capitalismo cumpre sim à República democrática de direitos e de bem estar social injetar dinheiro na economia e no comércio indiretamente por meio de projetos sociais; dinheiro no Bolsa Família, no Vale Renda, RENDA BÁSICA (projeto do deputado Eduardo Suplicy do PT) e os tais $600,00 (que o governo queria pagar só $200,00) e que poderia ser de $1.000,00. Esse dinheiro estaria voltando imediatamente para os bolsos dos comerciantes locais; farmácias, mercados, padarias, feiras, cosméticas, postos de gasolina, lojas de auto peças, etc. O estado não tem dinheiro diria o rapaz. Tem sim, basta taxar as grandes fortunas, basta parar de pagar juros para os bancos (juros da dívida pública), basta cobrar os impostos que muitas grandes empresas devem à União. Como, por exemplo, a Havan, (ou alguém acredita que aquele velho faz política porque gosta do Brasil?) ele deve $168 milhões à Receita Federal. Para ele o capitalismo deu certo. Essas dívidas das empresas já chegam a 2 trilhões! Que legal o capitalismo né? Esse sistema perdoa dívidas (impostos) de grandes empresas e esfola os trabalhadores que pagam impostos direto na fonte no supermercado, ou seja, os pobres e trabalhadores pagam os impostos enquanto os ricos não. Pois, todo trabalhador tem seu Imposto de Renda descontado direto na folha de pagamento obrigatoriamente, enquanto os capitalistas fazem maquiagem em seus contracheques, em suas receitas e não pagam o que devem à União, como podemos chamar isso? Sonegação? Ou uma prática capitalista para liberar a burguesia das suas obrigações para com o Estado?

Vocês acham que a elite de direita, leia-se, capitalista liberal gosta de política por que amam a Nação? Ou por que querem os aparelhos de Estado para si própria, sobretudo a economia e a Justiça? Você realmente acredita que o tal Partido Novo faz política porque pensa nos trabalhadores e gosta de ajudar os mais pobres? Esses caras são banqueiros, rentistas ou megaempresários, são de fato os capitalistas e, portanto, necessitam da sua exploração e do Estado; Banco Central, BNDES para financiarem a si próprios e perdoarem suas exorbitantes dívidas fiscais.

Você realmente acha que aqueles homens brancos e velhos enrolados na bandeira do Brasil em suas carreantas necrófagas gostam do Brasil? Não! Eles se enrolam na bandeira para se refugiarem das suas canalhices. Já dizia o filósofo inglês anarquista Samuel Johnson “o nacionalismo é o último refúgio dos canalhas”, ou, “um patriota, um idiota”, digo eu mesmo. E jamais acreditem naqueles patrões que pintam nos muros “a minha bandeira jamais será vermelha” esse é o típico capitalista que se esconde atrás da bandeira do Brasil para expropriar o seu trabalhador e que usa a bandeira para limpar as suas sujeiras.

Acho que aquela piadinha do rapaz do comércio já não faz mais sentido e espero mesmo que “ele” compreenda que o capitalismo não é louvável, muito menos um tipo de sistema que deve ser idolatrado, afinal que sistema é esse que não resiste a uma "gripezinha" como disse um certo presidente. Que tipo de sistema econômico é esse que precisa do Estado para lhe socorrer para que o caos geral não se instale e destrua a nossa sociabilidade humana, nossa paz social?

Enfim, eu poderia responder aqui com mil e um argumentos a perguntinha em forma de pilhéria, mas a argumentação é outra. Não a de responder onde o socialismo deu certo, mas de provocar sobre o que é o capitalismo, sobretudo, a sua expressão trágica neoliberal que propaga o fim do Estado (para os pobres, pois a burguesia a deseja) e agora pede socorro a ele. Que sistema capitalista é esse que basta uma "gripezinha", de novo, apenas 15 dias parados para os comerciantes entrarem em pânico, ameaçarem mandar os trabalhadores embora, em apenas 15 dias parados falarem quem falência? Fazerem carreantas em meio a uma quarentena de pandemia de um vírus altamente mortal? Quem são esses capitalistas que estão no mercado há 10, 15, 20 e mais anos e não acumularam capital para proteger os seus "colaboradores"? leia-se, trabalhadores precarizados.

Ora, meu amigo do comércio, você ainda está empregado? Seu patrão capitalista que deu certo, segundo sua piadinha, agora te ampara? Seu patrão nesse momento mais frágil e necessário da sua vida agora é o seu “colaborador”? Ele está disposto a abrir mão da sua riqueza para te socorrer? O capitalismo "que deu certo"  na sua visão de mundo irá ser “humano” com você?

E se o seu capitalismo que dá certo for o que:

  1. Ainda obriga o trabalhador a ficar dentro de uma fábrica/loja por oito horas diárias, ou mais;
  2. Paga salário mínimo de $ 1 mil reais;
  3. Não dá assistência médica, social ou seguridade nenhuma;
  4. Ainda tem capatazes/chefes ou “encarregados” te vigiando;
  5. Te obriga a trabalhar doente;
  6. Não te dá incentivos financeiros aos estudos;
  7. Não te paga mais pela sua qualificação/capacitação;
  8. Não socializa os lucros com você;
  9. Somente reparte os prejuízos;
  10. Vive fazendo terror emocional ameaçando te mandar embora;
  11. Assedia você moralmente;
  12. Te trata como ou objeto.

(Perdão pela heresia, pelos 12 mandamentos do uber, não resisti, em tempos de extrema religiosidade política, achei oportuno falar nessa língua).

Retomando, “meu amigo” a sua noção de capitalismo é arcaica, está caduca, ela e o seu patrão, pois datam do século XIX e XX. Infelizmente você é um jovem que não se atualizou em relação às novas formas do capital dos países desenvolvidos que beira o estado de bem estar social e nega esses doze mandamentos, acima arrolados, meus pêsames, eu respeito a sua opinião e o seu patrão também deve te adorar. Você é um funcionário padrão (tipo aquele da fotinha de “funcionário do mês” das lojas magazine luiza – deprimente), ou melhor, beira a escravidão moderna ou a chamada uberização ou os entregadores do ifood (moto boys). Amigo, o seu orgulho do capitalismo é algo patológico e tem mais a ver com a sua mágoa ou trauma de alguma ideia torpe de socialismo, nesse caso você precisa de um bom psicanalista ou de muitas aulas de história de vertente da “história vista de baixo”, história dos movimentos sociais, história do movimento operário, recomendo Eric Hobsbawm como remédio.

Por fim indago-te se quando o seu patrão/capitalista comprou aquela “S-10” zerinho, ou fez aquela viagem dos seus sonhos, ou quando ele ampliou a sua “loja” que era uma portinha e agora é uma grande loja, ou quando ele comprou mais bois para sua já grande fazenda se você teve participações nos lucros? Pergunto isso porque se acaso a resposta seja não, eu te questiono se você acha realmente justo que o capitalismo não divida os seus lucros que você foi responsável por produzir, mas te obriga a repartir os prejuízos que a incompetência/ganância dele o fez produzir. Você acha justo ser penalizado pelos prejuízos do seu patrão/capitalismo? Você acha realmente justo que o capitalismo te “meta o pé” no momento em que você mais precisa dele emocional e socialmente, precisa do seu emprego/trabalho enquanto um lugar de ser, estar e permanecer no mundo das relações sociais e humanas? No momento em que você necessita se sentir ocupado e útil para preencher o vazio de uma pandemia, você acha razoável que o capitalismo nessa hora mais frágil da sua vida lhe trate como um objeto?

Caro amigo do comércio e da piadinha sem graça, espero mesmo que “você” ainda esteja trabalhando, espero que o tal capitalismo que você tanto ama e defende seja humano com você e lhe dê a devida reciprocidade. Acho que a resposta a sua piadinha indecente foi dada.

Esse tipo de capitalismo acima descrito eu nego com a força da minha alma. Fraternos abraços e saudações “socialistas”.

 

*Professor adjunto da UFMS, campus de nova Andradina

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornal da Nova

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