Você filma o(a) 'doidinho(a)' do centro da cidade por likes?

*Mary Celina Ferreira Dias


Vi, no Instagram, um vídeo em que uma mulher em situação de rua, em possível adoecimento mental ou estado de embriaguez, é filmada e transformada em piada. Senti, na hora, um misto de indignação e perplexidade. Coloco “doidinho(a)” entre aspas desde o título porque as aspas servem para denunciar um rótulo e convido você, leitor(a), a se perguntar por que reduzimos uma vida a uma alcunha. Colocar “doidinho(a)” entre aspas não é gesto meramente estilístico; é recusar a naturalização do xingamento como descrição neutra.

A cena exige que façamos perguntas sobre como rotulamos, expomos e nos divertimos com o sofrimento alheio. Filmar alguém que está vulnerável e transformá-lo em conteúdo para rolar a timeline é um gesto social que merece análise. Presumo que parte desse comportamento esteja ligado à lógica das plataformas; likes e engajamento criam incentivos para mostrar o extraordinário, o bizarro, o degradante. Quando a exposição vira entretenimento, a pessoa filmada deixa de ser sujeito e passa a ser espetáculo. Há aí uma assimetria de poder evidente; quem filma detém a narrativa e controla a circulação da imagem.

Isso não é apenas falta de tato. É uma prática que reproduz estigmas. Chamamos alguém de “doidinho(a)” e depois rimos da sua roupa, da sua postura, do seu tropeço; naturalizamos a desumanização como forma de brincadeira. A sociologia nos lembra que o rótulo não é neutro; ele implica numa hierarquia moral e material. Rotular e virar piada sobrevive do silêncio coletivo.

A comparação com vídeos de “caridade” neste contexto que falo com você leitor(a) é pertinente. Filmamos quando entregamos uma cesta básica, quando registramos um abraço, quando fazemos um gesto de assistência; a diferença muitas vezes está apenas na intenção declarada. Mas é comum que essa filmagem cumpra duplo papel: mostrar a generosidade de quem dá e consolidar a passividade de quem recebe; a câmera torna o doador visível e o receptor invisível enquanto sujeito. Em ambos os casos, a pessoa em vulnerabilidade é objeto, não interlocutor.

Pare de filmar sem perguntar; o consentimento é básico e não é simbólico. Se a intenção for ajudar, priorize a ação concreta sobre performance; oferecer contato com serviços sociais, procurar organizações locais, ou simplesmente acompanhar a pessoa até um posto de apoio pode ser mais efetivo do que registrar o momento. E quando a filmagem já circula, evite compartilhamentos que reproduzam a humilhação; tomar a atitude de denunciar o conteúdo nas plataformas é uma forma de responsabilidade coletiva.

É necessário nomear o problema, questionar o rótulo, propor práticas concretas e insistir na dignidade das pessoas. A câmera pode ser instrumento de visibilidade, ou pode ser instrumento de violência; escolher não filmar alguém em sofrimento já é um ato político e ético.

*Bibliotecária da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Mestre em Antropologia pela UFGD. Doutoranda em Psicologia pela UCDB

Este texto, não reflete, necessariamente, a opinião do Jornal da Nova.

Cobertura do Jornal da Nova

Quer ficar por dentro das principais notícias de Nova Andradina, região do Brasil e do mundo? Siga o Jornal da Nova nas redes sociais. Estamos no Twitter, no Facebook, no Instagram, Threads e no YouTube. Acompanhe!


Comentários